Formiga
em construção
— Camaradas, estamos aqui reunidas… — começou por dizer a cabecilha.
— Alto, alto! Falto eu — e uma formiga enfezada entrou a correr na galeria em forma de anfiteatro.
— Sempre atrasada. E a senha?
— Profiteroles.
— Está certo. A camarada lá atrás levantou uma pata. Queria dizer alguma coisa?
— Queria, não. Quero! A camarada desculpe lá, mas não acho bem essa senha que escolheu.
— Ora essa, então porquê?
— Não é por nada, mas parece-me muito pequeno-burguesa. Nós, formigas operárias, não devíamos pactuar com concessões de linguagem ao sistema que nos oprime.
— Muito bem, muito bem — concordaram as outras formigas.
— Ó camarada, não seja assim tão sectária. É só uma senha. Ao fim de dezoito horas de trabalho uma formiga não tem cabeça para tudo, caramba — enervou-se a líder da conjura. — Agora, podemos parar de discutir migalhas e falar do que interessa?
— E que é...? — perguntou a enfezada, um pouco a medo.
Levantou-se um burburinho de indignação e a poeira de sessenta patas a revolver a terra, protestando em uníssono:
— Santa ignorância!
— Que vergonha!
— Maçarica!
— Calma, calma — impôs-se a superintendente, quando a poeira assentou. — Todas nós temos direito às nossas dúvidas. A camarada formiga-soldado está na recruta, mas merece o nosso respeito. Lembrem-se do que diz o provérbio: «A formiga, ainda que pequena, mata o crocodilo».
Fez-se um silêncio subterrâneo, e algumas formigas disseram que sim com a cabeça, em jeito de concordância.
— Assim está melhor — e suspirou didaticamente. — Vamos às contestações. Eu proponho que discutamos desde já o problema da habitação no formigueiro. Parece-me prioritário.
— Apoiado, apoiado — disseram todas.
— Quem começa?
— Posso ser eu, camarada — disse uma formiga igual às outras. — O meu caso é paradigmático, se me permite.
— Força.
— Bem, eu tinha arranjado um quarto só para mim no túnel 1391, galeria J, câmara B5, e na semana passada foi tudo terraplanado para alargar a despensa gourmet da Rainha. Fiquei sem nada!
— Um quarto só para si? Mas isso é contra o espírito do grupo! Não sabe que o sucesso do formigueiro advém do esforço de cada uma de nós para construir o bem comum? Que todas as conveniências individuais são um obstáculo à perfeita harmonia da nossa comunidade?
— Era só um investimentozinho…
— Só um investimentozinho? Ora, francamente! Por acaso está recordada do lema deste formigueiro?
— Organização, disciplina, paciência e…
— E… e…
— E uma concertina! — ouviu-se no auditório. Gargalhada geral.
— Pouco barulho! Mas que brincadeira vem a ser esta? — zurziu a comandante-em-chefe. — Organização, disciplina, paciência e santa rotina, assim é que é!
— Bo-ring — sussurrou uma das formigas para a que estava ao seu lado.
— Camarada, posso estar errada, mas parece-me que esta reunião está a descambar um bocadinho — disse outra formiga.
— E o que é que propõe, nesse caso?
— Proponho que falemos de nós. Dos nossos sonhos.
Mais gargalhadas. E alguns assobios.
— O meu sonho é ganhar asas, tornar-me rainha e fundar uma nova colónia — disse a formiga nº 5 (a partir de agora, para facilitar, passamos a dar-lhes números).
— Quem é que tem tempo para sonhar, aqui? — indignou-se a formiga nº 7. — Ele é procurar comida e água, ele é assegurar a limpeza do formigueiro, ele é cuidar da nossa Rainha, ele é proteger a colónia, ele é alimentar as pequenas larvas…
— As larvas! — interrompeu a formiga nº 11. — Cada vez mais exigentes e insubordinadas.
— A juventude está perdida — concordou a nº 3. — Já não aceitam dividir uma migalha de pão, querem tudo só para elas. Andamos a criar uma geração de egoístas.
— No meu tempo não era assim!
— Ninguém merece o que nós passamos!
Ilustradora Reinava o descontentamento na ala oeste do formigueiro. As queixas eram muitas: aumento da jornada de trabalho, imposição de horas extraordinárias, falta de segurança nas escavações da frente, etc, etc. Isto, para início de conversa.

Proibido por lei o direito de associação, uma dúzia de formigas operárias encontrou-se clandestinamente para discutir o estado das coisas e animar o moral das tropas.
— Ordem! Ordem, camaradas! — exortou a formiga que tinha tido a ideia da reunião secreta, já a ver a sua vida a andar para trás. — Deixem-me falar, por favor.
— Fale, fale, camarada. Estamos aqui para a ouvir.
— Dá-me a sensação de que não estamos ainda preparadas para mudar o establishment — suspirou a formiga. — Há muita agitação e ansiedade no ar, e vejo que algumas vontades do ego se sobrepõem ao interesse comum. De maneira que o melhor, acho eu…
— Desculpe interrompê-la, camarada. O que quer dizer establishment?
— O establishment é um termo inglês que se refere ao grupo ou sistema dominante que exerce poder e influência sobre uma determinada área, seja política, económica, social ou cultural.
— Ah. Entendido.
— Portanto, como eu estava a dizer, o melhor é pormos em stand by a ideia inicial e fundar outro tipo de movimento revolucionário. Com esforço, paciência e perseverança, qualidades que são nosso apanágio, havemos de conseguir os nossos intentos. Para já, proponho que a nossa agremiação se concentre em fundar um clube de leitura!
— Um clube de leitura?! — murmurou o coletivo formigal.
— Isso mesmo! E o primeiro livro que vamos discutir na próxima sessão clandestina será, noblesse oblige, As Formigas, do grande Boris Vian.

Ouvem-se aplausos que fazem estremecer os torrões de terra mais próximos. De antenas no ar e o moral em cima, as doze formigas saem ordeiramente, agora em sentido contrário.

— E qual vai ser a senha, camarada?

— Construção!
Marta Monteiro Texto Carla Maia de Almeida

A Formiga em construção

“A formiga em construção” é um objeto decorativo em faiança e latão fundido manualmente, que agiganta este pequenino animal, convidando-o a habitar as nossas casas.

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