O Cantar
do Grilo
Dizem que chegara à aldeia na última tarde de um Verão chuvoso. Que chegara já velho, por ter envelhecido numa outra terra que nunca ninguém soubera qual era, a puxar uma carreta que trazia para além de sete vezes o seu peso em livros. Nunca ninguém vira tantos livros, até porque, por a escola mais próxima ficar longe demais das pernas curtas dos mais pequenos, ninguém na terra sabia ler. E já se sabe que a estranheza por se ver alguma coisa que nunca se viu antes se a uns causa desconfiança a outros causa curiosidade. Esta aumentada por outra grande bizarria: o grilo que o velho trouxera com ele, dentro de uma gaiola de ferro dourado. Grilo, esse, que depressa ganhou a fama de embruxado, de criatura com sabedoria de outro mundo. Uma coisa tão tamanha que fez correr por todas as bocas da aldeia que quem lhe ouvisse o cantar perderia todos os medos: do escuro, dos azares e má sorte, do lutar por aquilo que é certo. Que fosse homem ou mulher ganhava peito para pensar pela própria cabeça e vontade para fazer o mundo que ficava para além da estreita curva onde acabava a aldeia. Um a um, todos acabaram por ir ter com o velho para que o grilo lhes lavasse os medos da alma. Porque ninguém gosta de viver com medo. E, um a um, enquanto o grilo cantava, o velho escolhia-lhes um livro e ensinava-os a ler. Um ler que continuava muito para além do simples juntar de letras. Depois do primeiro livro pediam outro, o grilo cantava de novo, e depois outro livro, e mais outro. Palavra atrás de palavras, página atrás de página, os medos iam ficando para trás e o mundo abria-se-lhe, sem curvas, nem nada a turvar-lhes o horizonte, nem nada a temer. Era aquele um feitiço tão forte, que mesmo muitos anos depois de já não haver grilo nem velho, ele continuava a passar de pais para filhos e destes para os filhos que eles teriam depois. Nunca ninguém soube como se perpetuou esta magia. Há quem diga que o feitiço do grilo ficou no juntar das letras e que sempre que alguém aprende a ler se ouve o seu cantar, e nesse preciso momento esse alguém perde o medo de ganhar o mundo. Dizem, mas aqueles que não acreditam nem em livros nem em grilos, e que por isso ainda não perderam o medo de nada, dizem, abanando a cabeça, que isto é apenas uma lenda. Ilustrador Bruno Maltez Texto Cristina Nobre Soares

Cantar de Grilo

“O cantar do grilo” surge de longínquas memórias, onde o apanhar de um grilo revelava tardes de perícia nos verões sem fim da nossa infância.

A ColecçãoComprar

Privacy Preference Center