Trouxeram-me para Portugal nem a palavra Portugal existia na boca dos homens. Mas a terra por debaixo dos seus pés, sim. Em Sta. Iria da Azóia, que na altura nem sonhava em chamar-se assim, tenho parentescos com quase três mil anos. Gostei dos terrenos pedregosos onde enrolar as minhas raízes, gostei do clima, da vista para o oceano. Há quem se queixe dos períodos de seca, a mim não me faz grande diferença. Como vos disse, adapto-me. Desfruta-se tanto mais das primeiras gotas de água quando por elas ansiámos durante meses e meses de escassez. Adaptando-me a tudo isso, tornei-me numa personagem indispensável ao palco da agricultura portuguesa, sempre em cena. Aqui fui bem recebida, e estimada. Também os poetas portugueses me cantaram, tal como os gregos. Todos me acolheram, no seu dia a dia, deixando que lhes alumiasse as candeias, aos pobres, e os candelabros, aos ricos. Sou parte essencial do repasto mais frugal, tanto quanto dos grandes banquetes dos nobres. E no ritos religiosos já não prescindem de mim. Monte
das Oliveiras
Demorou, até primeiro se abeirar alguém, e foi uma mulher. Trazia um bebé às costas e com o peso do seu corpo puxou um ramo para baixo, gesto inaugural que muito me impressionou. Colheu um punhado de azeitonas com as suas destras mãos, e eu soube assim que havia homens sobre a terra. Longe de imaginar o que isso viria a implicar... Em dois instantes estavam em todo o lado, com as suas cidades, os seus automóveis, as suas estradas. Guerrearam-se e amaram-se, destruíram-se e veneraram-se - e eu aqui. Paciente, apaziguadora. Nunca deixaram de apreciar o sumo dos meus frutos, a pureza deste óleo, mas o culto esmoreceu. Já fui muito venerada, imaginam? Diferentes povos me dedicaram valores como a sabedoria, a paz, a abundância e a glória, tudo isso projetavam em mim. Tanto progresso e tanta transformação e, afinal, o que ainda nos parece essencial é o paladar mais virgem, aquela suculência inigualável de um prato bem regado com estas preciosas gotas. Talvez sejam elas o sabor do próprio tempo. Cada uma destas gotas vem de muito longe, e traz em si toda a história do mundo: é que eu estava lá, quando Cristo rezou e morreu no Monte das Oliveiras, estou por todo o lado nas histórias que narra a Bíblia, e até no código de Hamurabi. No Corão, a oliveira nascida no monte Sinai é cantada e elogiada, e do azeite que dos seus frutos se extrai, diz-se que se parece a “um astro rutilante”. Fui cantada e louvada pelos grandes poetas gregos, de Homero a Sófocles, passando por Ésquilo e Plínio. Virgílio, na sua Eneida, recomenda: “e com um ramo de oliveira o homem se purifica totalmente.” A mais antiga referência documental encontra-se num papiro egípcio do século 12 a. C., no qual o faraó egípcio Ramses III oferece ao Deus-Sol os olivais espalhados em torno da cidade de Heliópolis: "Destas árvores pode ser extraído o óleo mais puro para manter acesa as lâmpadas do teu santuário." Desde a Antiguidade egípcia, desde antes mesmo, até aos tempos de hoje. Gota a gota, cultura a cultura, refeição a refeição. Foi também muito importante para os etruscos, de quem recebemos diversos testemunhos sobre o papel das azeitonas na alimentação: nos destroços do naufrágio do Giglio (em 600 a.C.), as azeitonas foram conservadas em ânforas etruscas cheias de salmoura. No "túmulo das Azeitonas" de Cerveteri (575-550 a.C.), encontraram-se caroços, provavelmente uma oferenda ao defunto. Os atletas gregos usavam uma coroa das minhas folhas caso se sagrassem vencedores. E as suas mulheres sentavam-se à minha sombra, quando queriam engravidar. Já os romanos usavam deste óleo para tudo, medicamento, cicatrizante, analgésico. Com a minha madeira se construíram ceptros reais, e com cada gota deste azeite milenar se ungiram monarcas e sacerdotes. Os hebraicos chamavam-me zait, e ao sumo da minha azeitona, az-zait, Na inigualável história de Noé perante o final do mundo, no livro do Génesis, uma pomba traz-lhe uma mensagem para que não se preocupe, que o mundo irá perseverar: essa mensagem é um ramo de oliveira que carrega no bico...

Os egípcios já procuravam o óleo dos meus frutos há seis mil anos, depois na Síria, na Palestina, em todos estes lugares foram encontrados vestígios de instalações para a produção de azeite, além de fragmentos de grandes potes destinados a guardar o precioso líquido. Não duvidem, que eu vim de longe, dos confins do tempo. No início tinha família por todo o Crescente Fértil, e foram os gregos que nos levaram atrás na sua expansão. Só os gregos, para moverem até as coisas imóveis! Também fomos levadas desde o norte do que hoje vocês chamam Irão, no estremo sul do mar Cáspio. Aquilo que dávamos era tão rico, e a nossa sombra tão prazenteira, que nos levaram pela bacia do Mediterrâneo e mais tarde até além mar, nas caravelas, com os portugueses e com os espanhóis, até às Américas.

No tempo dos Descobrimentos, o meu azeite era um dos "medicamentos" essenciais a bordo de qualquer nau. Havia um documento específico para regular o uso destas substâncias, com o breve título de: "Rol da Botica para os cem homens da navegação de uma Nau para a Índia de quinhentas e cinquenta até seiscentas toneladas" (vigente em cerca de 1617) e neste, lá estava o meu óleo, para a preparação dos unguentos. Havia 22 unguentos e preparados farmacêuticos obrigatórios na Armada portuguesa, dos quais pelo menos 7 exigiam a pureza do meu óleo. Com tanta aventura, tenho hoje família por todo o mundo, na Argentina, Austrália, Chile, Estados Unidos da América, até ao Japão, México, China e República da África do Sul.
como cada gota veio de longe Ilustrador Os homens chegam e partem, amam e matam, destroem e criam, e eu aqui. Desde tempos em que nem sequer havia homens, quando só os pássaros se vinham alimentar dos meus frutos, e os animais buscavam a minha sombra. Foram justamente as ordens religiosas que dedicaram maior atenção ao fabrico do “óleo sagrado”, como lhe chamavam, o que teve uma importância considerável na economia do convento de Santa Cruz de Coimbra, do mosteiro de Alcobaça, da Ordem dos Freires de Cristo, da Ordem do Templo e da Ordem dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas muito mais, cada gota contou sempre muito mais funções: Em Portugal, como noutros lados, usaram as gotas do meu óleo como unguento, como combustível e – gente de bom apetite! – como nutrição. Não fui totalmente esquecida nos tempos modernos, eu e o meu poder simbólico, mas já não é como na Antiguidade... Recentemente, quando o homem posou pé na lua, o que lá deixou foi uma parte de mim. Quando o astronauta Neil Armstrong finalmente alunou, deixou lá um dos meus ramos, na tentativa de simbolizar a paz. Também é irónico que sempre tenham usado os meus ramos e as minhas folhas para simbolizar a paz mas, bem vistas as coisas, os gregos queimavam todas as oliveiras do inimigo, em tempo de guerra. A ideia era enfraquece-los de fome.

Talvez a paz contenha a guerra, não é?
Como uma boa refeição ganha mais sentido depois de horas de jejum; ou será o inverso?

Pinga a pinga, poema a poema, a cada banquete, a cada farnel, todas as épocas souberam apreciar as muitas dimensões do azeite: o seu sabor, as suas múltiplas funções, o seu contributo para uma dieta saudável, o seu uso nas mais variadas culturas, ao longo de todos os tempos. São preciso cinco a seis quilos dos meus frutos para se extrair um litro de azeite. Cada gota desenha ao cair o fio desta história de tempos imemoriais. A gota que cai hoje na azeiteira da mesa moderna é essencialmente a mesma que outrora caiu no repasto do homem neolítico, na pele da mulher grega que o utilizava como hidratação, na candeia do pastor que conduzia os seus rebanhos pela noite escura. Iluminei a leitura dos Livros de Horas dos monges, e tantas outras horas sábias do mundo. Até à chegada à Europa das lamparinas a gás, no século XIX, eram as lamparinas de azeite que nos garantiam a iluminação.

Gota a gota, cultura a cultura, refeição a refeição.
Cada uma destas gotas vem de longe – e sabe muito.

A nossa cultura está de tal forma embebida neste bálsamo que, mais além dos poetas clássicos, impregna hoje a forma como falamos: dizemos "o azeite vem sempre ao de cima" para falar de uma certa verdade inevitável, ou “estar com os azeites” para um estado particular de humor. Sabemos, claro está, que há coisas que não se misturam. Luís Favas Texto Joana Bertholo

Monte das oliveiras

“Monte das oliveiras” traz para a mesa a paisagem que temos no olhar: serenas oliveiras em campos de perder de vista.

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