A Bruxa
e os frutos
O entardecer tinha a humidade dos dias de Inverno. A rapariga desceu a ponte. Foi direito a casa, tirou o agasalho e acendeu a candeia. O sol desaparecia atrás dos montes para que a noite viesse mais cedo.
À meia-noite alguém bateu à porta. A rapariga despertou em desassossego. Com a garganta apertada, abriu a vidraça e reparou numa velha em farripas que lhe pedia guarida. A rapariga ainda hesitante, acabou por dar-lhe entrada. Puxou um banco de madeira e convidou a velha a sentar-se. Trouxe-lhe uma fatia de pão de centeio, uma sopa e um punhado de amêndoas.
De tez pálida, só de pele e osso, talvez a morte passasse pela velha e nem a visse. Pronunciava as palavras devagar, arrancando-as de um vocabulário antigo. Sentada à mesa, viu logo o tamanho da solidão da rapariga, que passava horas a fio a escutar-se a si própria. “Tu que não crês em mágicas ou alminhas penadas, nem sequer nas tropelias dos bichos infernais, senta-te aqui ao pé de mim”, disse a velha. Da boca de uma gata negra que descansava aos seus pés tirou uma noz de casca sardenta e colocou-a entre as mãos avultas de vincos. Estalou os dedos três vezes e a noz abriu-se ao meio.
Seres irreconhecíveis esguichavam, esbracejavam e saltavam como sapos entre as fumegantes gretas. A sala ficou empestada de um cheiro intenso a fruta apodrecida. A rapariga observava aquele espectáculo, atónita. Parecia que todos os sonhos caminhavam para o fundo do desespero. Até que a sua sombra saiu do chão e tirou-a do silêncio. Como se cuspisse malaguetas, gritou, “Não me metes medo velha dos diabos!
Ilustrador Nem me venhas esmagar o espírito com essa mão encarquilhada de velha. Faço-te num esfregalho se não te somes já daqui!”. A velha suspirou fundo e saiu, desaparecendo na escuridão.
No dia seguinte, a rapariga levantou-se cedo como habitual e colou-se ao vidro da janela para espreitar a manhã entre os cedros. Pela primeira vez, desejou ter outro corpo, outra alma, estar noutro lugar. A certa altura, imprevistamente sentiu no peito uma vontade de renovar o seu próprio destino e saiu de casa para espairecer.
No meio do jardim estava uma figueira melancólica, cujos ramos tombavam com o peso dos figos gordos. A ela pesava-lhe a carga do passado, por isso entregou-se à cobiça e à doçura dos frutos. Ao meter o último figo na boca, desmaiou.
Pouco demorou para sentir que já não era a mesma criatura. Os olhos pequeninos ainda não estavam prontos para descobrir o físico alterado, mas sentia bem a ligeireza e a elasticidade fora do normal. A cintura era mais fina que a de um alfinete e dois pares de asas criavam a suspensão do corpo. No topo da cabeça tinha duas antenas fortes como pêlos espetados. A voz era mais assobiada. Não se viu ao espelho, mas sabia que este traste-diabólico era o âmago do seu desejo.
Um dia, fui pelas margens do rio até ao bosque. A neblina tépida pintava a paisagem. Perguntei pela rapariga. “Fugiu na rabanada de um vento!”, “endoideceu porque intrujou o destino!”. A verdade é que nunca mais ninguém a viu, mas debaixo da figueira ainda se ouve o seu assobio. Sara Feio Texto Teresa Melo

A Bruxa e os frutos

“A bruxa e os frutos” resulta de trazer para a materialidade o quotidiano hábito que sempre tivemos de nos juntarmos à mesa em família, comendo nozes e amêndoas, quebrando-as e descascando com elas conversas e momentos guardados com carinho.

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