Um Melro,
evidentemente
Há uma antiga tradição de que os melros levam as almas das pessoas no bico, precisamente o contrário do que fazem as cegonhas, mas não é disto que quero falar, mas sim de um caso passado durante a minha adolescência, quando encontrei um melro caído no chão, ferido numa asa e o levei para a sacristia e o alimentei e todos os dias rezava para que voltasse a voar, mas não se viam melhoras. O padre enternecia‑se com a minha dedicação. Um dia, para nossa surpresa, vimo-lo voar, sair pela janela aberta. O milagre parecia ter acontecido porque o melro roubara uma hóstia e a levara no bico, sentíamos, ao vê-lo perfurar os céus, que era o corpo de Deus que o fazia voar, como se fosse um motor de avião, e, creio, se não fosse o Almiro, que andava aos tordos, ter disparado um tiro de caçadeira contra o melro, acho que teria sido mesmo um milagre. Assim, ficámos com dúvidas. Teria a ave sido castigada por ter roubado a hóstia? e que Deus seria esse que a fizera voltar a voar para imediatamente a punir com a morte? Enfim, graças ao melro tornei-me ateu. Ilustrador Mas não é isso que quero falar verdadeiramente, é de um outro caso, de um amigo que atirava pedras aos melros e eu perguntei-lhe por que raio de motivo ele o fazia, coitados dos melros, e ele disse que pousar é como morrer. Ou seja, um pássaro morto é um pássaro que não voa, para esse meu amigo pousar era uma ignomínia. Mas o que é que ele poderia dizer às aves em vez de lhes atirar pedras? Não pousem? Ele policiava o ar e castigava os pássaros que prevaricavam e desistiam do céu, sim, era isso que ele pretendia, libertá-las da terra, de ter de fazer coisas que não eram dignas da sua natureza diáfana, fiquem no céu, gritava ele aos melros, resplandesçam, sejam nuvens, sejam ar, sejam céu, não façam como nós humanos, não sejam seres bidimensionais que andam para trás e para a frente e para os lados, preocupados com o desemprego e a inflação, sem saber qual é o sentido disto, sem conhecer a verticalidade do espaço e da vida, vocês, por amor de Deus, voem, não pousem. Mas não era disto que eu queria falar, era de Maldonado, o pintor espanhol que trabalhou com Kandisnky e que, inspirado pelo artista russo, desenvolveu um tipo de pintura abstracta com características muito especiais, pintava com vassouras muito antes de Pollock o fazer, aliás, ao Maldonado chamavam-no empregada doméstica por causa disso. O público, pouco sensibilizado para a pintura abstracta, estávamos no princípio do século XX, perguntava o que era aquilo que ele pintava e Maldonado respondia sempre da mesma maneira: É um melro, evidentemente. Nunca ninguém percebeu o que ele queria dizer com isso, mas ainda hoje se usa a expressão “é um melro, evidentemente” para situações incompreensíveis, mas não era disto que eu queria falar, era de um melro de cerâmica que eu vi numa montra. Sei que existe na tradição mística judaica uma taumaturgia que consiste na criação de um homem artificial, o que acho aberrante, já bem bastam estes que existem, mas fiquei curioso com a possibilidade de fazer voar a terra. Para criar um homem artificial, costuma ser de barro, escreve-se a palavra “verdade” na testa, o que considero tenebroso: a verdade é o mundo à nossa volta, a miséria e as bombas de hidrogénio e os pobres espoliados de uma infância, não há nada mais verdadeiro do que os cadáveres que vamos enterrando, o que é preciso agora é imaginar alguma coisa melhor, e eu gostava de começar por fazer com que o melro de faiança levantasse voo, uma expressão artística de que tudo é possível, não com a verdade azeda que nos corrompe, mas com uma que seja ainda inocente e bela, com pele de criança, com imaginação. Era isso que eu queria, fazer o melro voar. Pedro Lourenço Texto Afonso Cruz

Um Melro, evidentemente

“Um melro evidentemente” vem do nosso olhar atento sobre os movimentos deste afável pássaro, do seu jeito saltitante de pousar.

Ver ColecçãoComprar

Privacy Preference Center